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Nova Lei de Licitações: os vetos têm razões que a própria razão desconhece

 

Por Caio de Souza Loureiro

 

Vencido o longo percurso legislativo, a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21) vem à luz com duas dezenas de vetos presidenciais, alguns deles que tocam pontos relevantes do texto legal e que, infelizmente, fulminam algumas inovações interessantes da proposição legislativa. Muito mais do que expor todos esses vetos, ocupo-me de algumas das razões apresentadas pelo Executivo federal.

Nelas, veremos que o desejo uníssono por melhorias efetivas do ambiente de contratação administrativa “é tolice, é bobagem, é ilusão”, e, ao fim e ao cabo, ainda há quem prefira viver sozinho nas suas razões, ao som do lamento de todos nós, “Doralices” dos contratos administrativos. Vê-se bem como é difícil superar o apego à tradição contratualista nacional, que se apresenta nitidamente nas razões desses vetos.

O primeiro veto negativo é a retirada de disposições relacionadas à conta vinculada prevista no caput do artigo 115. A lógica da proposta legislativa é muito clara: é preciso resguardar os recursos necessários ao pagamento dos contratos. Afinal, é notório que a falta de recursos é causa do insucesso de uma série de contratações. Essa carência é ocasionada muitas vezes pelo descontrole do planejamento orçamentário e desapego ao cumprimento das normas fiscais.

Assim, sem muito alarde e sem nenhuma grande revolução, o dispositivo apregoava a possibilidade de constituição de conta vinculada — obrigatória nas obras e serviços de engenharia, conforme outro dispositivo vetado (artigo 142, parágrafo único) —, na qual seriam depositados os recursos necessários aos pagamentos em cada contrato. A realização desse depósito era, pois, condição para a emissão da ordem de serviço (115, §2º) e, uma vez vinculados, os valores constantes dessas contas seriam impenhoráveis (§3º).

Contudo, numa só tacada, o Ministério da Economia recomendou vetos a essas três disposições, renegando a conta vinculada a uma mera faculdade da Administração e dela retirando qualquer eficácia. Não fosse suficiente esvaziar um instrumento bastante eficaz para suprir o resistente problema de falta (ou má-gestão) de recursos que sacrifica demais a execução dos contratos, as razões de veto traduzem o reconhecimento do descalabro de gestão e planejamento orçamentário:

“(…) Em que pese o mérito da proposta, a medida contraria o interesse público, tendo em vista que a obrigatoriedade de depósito em conta vinculada como requisito para expedição de ordem de serviço na execução de obras contribuirá para aumentar significativamente o empoçamento de recursos, inviabilizando remanejamentos financeiros que possam se mostrar necessários ou mesmo para atender demandas urgentes e inesperadas.
Ademais, tem-se que a existência de financeiro não deve ser exigência para a ordem de início do contrato, mas apenas a previsão orçamentária, caracterizada pela conhecida nota de empenho.

Por fim, tal medida infringe princípios e normas de direito financeiro, como o artigo 56 da Lei nº 4.320, de 1964, que exige a observância do princípio de unidade de tesouraria e veda qualquer fragmentação para criação de caixas especiais, como seriam as contas vinculadas, para a realização de antecipação de pagamentos por parte da Administração, que depositaria o valor da etapa da obra de forma antecipada, antes do cumprimento da obrigação por parte do contratado”.

Decupando as razões do Ministério da Economia (ME), há duas certezas: o próprio governo reconhece que não sabe gerir os recursos que detém e, por outro lado, não se tem a menor ideia de como funciona o fluxo de caixa de um contrato. No primeiro caso, atribuir à mera vinculação de valores a peja de comprometer a alocação de recursos públicos é a plena confissão de que o governo contrata sem planejamento, a ponto de não conseguir manejar verbas para temas urgentes sem sacrificar a execução dos contratos. Do outro lado, supor que não há necessidade de acautelar o fluxo financeiro para início do contrato ignora que, com a regra geral de pagamento antecipado, os contratados antecipam custos e despesas na execução, com a justa expectativa de serem remunerados após a conclusão da etapa ou a aceitação da medição. Ao suprir um mecanismo de garantia, o ME faz justamente aquilo que a lei pretendia coibir: o comprometimento da exequibilidade do contrato.

O veto aos dispositivos comprova a tese de Mencken de que “para o governo, qualquer ideia original é um perigo potencial, uma invasão das suas prerrogativas”. Afinal, somente assim para entender a razão por trás das razões desses vetos, que atestam as deficiências do governo sem qualquer pudor de evidenciar as consequências negativas à contratação. Nem se diga, para encerrar o tema, do risco que a parte final das razões de veto traz às estruturas de garantias de perfil profissiográfico previdenciário (PPP) ao avocar equivocadamente o artigo 56 da Lei 4.320/64. O ME lança inadvertidamente dúvidas sobre a possibilidade de estabelecimento de contas vinculadas e fundos garantidores dos contratos de PPP.

Seguindo, outro veto incompreensível é o que retirou da Lei o §4º do artigo 115, que condicionava a publicação do edital à existência de licença ambiental prévia, sempre que a responsabilidade do licenciamento fosse da Administração. O objetivo do dispositivo era mitigar o risco de demora da emissão da licença, que, não por raro, impede ou prejudica a execução dos contratos. Afinal, ao licitar já com a licença prévia emitida, a Administração reduz o risco de atrasos.

A dificuldade de justificar esse veto fica clara nas razões apresentadas pelo ME e pelo Ministério da Infraestrutura, que aduzem genericamente à impossibilidade de emissão da LP sem projeto, o que poderia impedir a contratação integrada, já que, nelas, o projeto básico é elaborado após a celebração do contrato. A afirmação não é imune a críticas, sobretudo porque não é certo que a LP depende de um projeto básico. Ela, certamente, demanda informações sobre o empreendimento, mas, na estreita necessidade dessa fase do licenciamento ambiental, é bem possível que se atendesse às exigências da LP com o anteprojeto que deve constar dos editais de contratação integrada.

A suposta impossibilidade de licitar contratações integradas, portanto, pode não se sustentar acaso os elementos obrigatórios do anteprojeto — previstos na própria Lei 14.133/21 — já sejam suficientes à emissão da LP. Portanto, no final do dia, é possível que o veto resulte apenas na supressão de um mecanismo interessante para evitar atrasos e insucessos na contratação.

Outro veto cujas razões são bastante frágeis é o que excluiu da Lei 14.133/21 o dispositivo que demandava a adoção da técnica — isolada ou em conjunto com o preço — como critério de julgamento nas contratações de serviços técnicos especializados acima de R$ 300 mil e que não tenham sido feitas sem licitação prévia.

O §2º do artigo 37, alvo do veto, tinha a clara intenção de evitar que escopos naturalmente complexos — “serviços técnicos especializados”, repise-se — sejam contratados sem qualquer cautela quanto à técnica envolvida na sua prestação. O histórico da Lei 8.666/93 dá conta do risco que há em balizar unicamente pelo preço a contratação de serviços especializados, que, pela sua própria definição, pressupõem alguma especificidade na prestação, a demandar avaliação prévia da técnica.

A despeito dos benefícios do dispositivo vetado, o Ministério da Infraestrutura (Minfra) e o ME justificaram a exclusão em dois argumentos: mitigação do poder discricionário do administrador e, mais relevante, que “poderá haver descompasso entre a complexidade/rigor da forma de julgamento versus objeto de pouca complexidade que prescindem de valoração por técnica e preço”. Sobre o primeiro argumento, não se deve gastar tempo, pois o que mais há na lei são dispositivos de delimitação da discricionariedade, que, de resto, não é absoluta. No entanto, pior é o segundo ponto, pois já seria difícil supor que serviços técnicos especializados não atraíssem, por si só, complexidade, tanto o mais quanto o dispositivo ainda estipulava um piso de valor bastante elevado (R$ 300 mil).

A consequência do veto, longe de se justificar pelas razões apresentadas, será a perpetuação de contratação, pelo exclusivo critério do preço, de prestações complexas e especializadas que demandariam maior apuro técnico, balizando por baixo os potenciais interessados.

As últimas razões merecedoras de crítica são aquelas que justificam o veto ao artigo 188, cuja redação recomendava que a regulamentação da lei fosse feita preferencialmente em apenas um ato normativo. Na prática, o dispositivo pretendia evitar um cenário de caos normativo diante da enorme quantidade de temas sujeitos à regulamentação. A predileção por um único ato normativo pretendia aglutinar todos esses temas, de modo a evitar a dispersão dos regulamentos, o que é tanto pior quando se sabe que cada ente federativo tem competência para editar a sua própria regulamentação.

No pior cenário, a derrubada da recomendação (deveria ser mesmo imposição) pode gerar um cenário parecido ao da normativa tributária, espraiada numa infinidade de normas infralegais editadas por União, estados, Distrito Federal e municípios. Mesmo que cada um deles editasse um único ato normativo para toda a regulamentação já se estaria num universo de milhares de decretos. O que dirá, então, se cada matéria for objeto de um decreto específico?

Mas o mais interessante é que a justificativa para a exclusão do dispositivo é completamente despropositada, ao se referir ao parágrafo único do artigo 59 da Constituição, que outorga à lei complementar a disciplina sobre leis. A primeira inconsistência é que o dispositivo constitucional é bem claro na referência a “leis”, o que excluiria a aplicação a normas infralegais como é o caso dos regulamentos previstos no vetado artigo 118. Segundo que já existe uma lei complementar para atender ao comando do parágrafo único do artigo 59 da Constituição. A Lei Complementar 95/98 cumpre esse papel e, vejam só, recomenda justamente a consolidação de normas, de modo a evitar dispersão, justamente a intenção original do dispositivo vetado por recomendação da Advocacia-Geral da União (AGU).

Não que todos os vetos tenham sido ruins. Muito pelo contrário. Há boas razões em alguns deles.

Destaco, aqui, a tomada de posição necessária e precisa do Executivo contra a hipertrofia dos Tribunais de Contas. É o que fica claro nos vetos ao inciso XII do §1º do artigo 32, ao artigo 159, parágrafo único, e ao artigo 172, todos eles corolários do alcance demasiado amplo da atuação das cortes de contas, notadamente o Tribunal de Contas da União (TCU).

Ao proscrever a aprovação prévia do órgão de controle externo nos diálogos competitivos (artigo 32, §1º, XII), a Advocacia-Geral da União (AGU) assim se posicionou: “Em que pese o mérito da propositura, a medida, ao atribuir aos tribunais de contas o controle da legalidade sobre atos internos da Administração dos três poderes da República extrapola as competências a eles conferidas pelo constituinte, por intermédio do artigo 71 da Carta Magna, e também viola o princípio das separações dos poderes, inscrito no artigo 2º da Constituição Federal”.

Em sentido semelhante, as razões apresentadas pela mesma AGU, em companhia da Controladoria-Geral da União (CGU), ao veto ao parágrafo único do artigo 159, que previa a necessidade de anuência prévia do Tribunal de Contas para que as sanções previstas na sua respectiva lei orgânica fossem elididas por meio de acordo de leniência celebrado nos termos da Lei Anticorrupção:

“(…) Em que pese o mérito da propositura, a medida, ao prever a participação de órgão auxiliar do Poder Legislativo na aplicação de instrumento típico do exercício do Poder Sancionador da Administração Pública, viola o princípio da separação dos poderes, inscrito no artigo 2º da Constituição da República.
Ademais, a extensão dos efeitos promovidos pelo acordo de leniência de que trata Lei nº 12.846, de 2013 se inserem dentro da função típica da Administração Pública e não se confundem com a atividade de fiscalização contábil, financeira e orçamentária exercidas pelo Poder Legislativo, o que acaba por extrapolar as competências conferidas pelo constituinte, por intermédio do artigo 71 da Carta Magna.

Outrossim, a medida contraria o interesse público, ao condicionar a assinatura do acordo de leniência à participação do Tribunal de Contas respectivo, ainda que restrito às suas sanções, criando uma nova etapa no procedimento, o que poderia levar a um enfraquecimento do instituto”.

Por fim, o contraponto ao poderio desmedido do TCU vem com o veto ao artigo 172, que vinculava os demais Tribunais de Contas, estaduais e municipais, ao entendimento sumulado do correspondente federal. Nesse caso, à AGU e CGU aderiram o ME e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, uníssonos na ideia de que essa disposição violaria a separação de poderes e o pacto federativo.

É bem verdade que não se deve esperar uma reação tranquila por parte dos Tribunais de Contas, especialmente em relação à avaliação prévia do diálogo competitivo — no qual poderão se valer de dispositivos das suas leis orgânicas que autorizam o exame prévio de editais. Ainda assim, é bastante relevante o posicionamento firme dos órgãos do executivo em prol do enquadramento constitucional dos tribunais de contas, seja por relembrar que são eles, ao fim e ao cabo, órgão de assessoria do Legislativo, e não um poder autônomo, seja por delimitar o espectro do que a Constituição define como competência para o controle orçamentário.

Portanto, há muito o que se averiguar nas razões apresentadas aos vetos apresentados à Lei 14.133/21. Elas refletem entendimentos relevantes dos órgãos do Executivo sobre o regime de contratação, o que não é irrelevante, considerando o horizonte que se descortina nos próximos anos. Lembra-se, aqui, que o natural processo de concretização de uma nova lei irá apenas começar, e a forma com a qual esses mesmos órgãos irão interpretar e aplicar os dispositivos será relevante nesse processo. Eles também estarão diretamente envolvidos na elaboração dos inúmeros regulamentos pendentes e que irão conferir efetividade a vários temas importantes da lei.

Especialmente pelos vetos negativos, a perspectiva não é alvissareira, pois algumas razões refletem um compromisso muito apegado com deficiências tradicionais do (agora) antigo regime geral. Se esse tipo de entendimento se consolidar na discussão de outros dispositivos, é possível esperar retrocesso maior ao término do período de sedimentação da nova lei.

 

Originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico.