PANORAMA SOCIETÁRIO
Decisões da CVM e do TJSP reforçam posicionamento mais brando sobre o exercício de direito de voto pelo acionista controlador
Decisões da CVM e do TJSP reforçam posicionamento mais brando sobre o exercício de direito de voto pelo acionista controlador
Posicionamentos recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”) e da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) têm apontado para a superação da tese de conflito formal de interesses com relação ao exercício do direito de voto por acionista controlador, privilegiando a tese de conflito material, como detalhamos a seguir.
Em que pese o voto ser um direito do acionista, deve ser exercido de acordo com o interesse da sociedade – sendo assim, o voto realizado com finalidade distinta é considerado como abusivo. A tese do conflito formal leva à proibição absoluta do exercício do direito de voto (i.e., presume-se que o acionista, ao ter interesse divergente do da sociedade, votaria de forma abusiva). A lei enumera duas situações nas quais a tese do conflito formal deveria prevalecer, quais sejam, a aprovação do laudo de avaliação de bens para os quais o acionista concorre para a formação do capital social ou a aprovação das contas do acionista na qualidade de administrador da companhia. De modo distinto, de acordo com a tese do conflito material, entende-se necessária a análise do mérito do voto proferido pelo acionista, para que se constate se o voto foi exercido em interesse conflitante com o da companhia ou não. Apesar de a legislação pátria ter uma redação dúbia sobre a questão (há uma proibição genérica para que o acionista vote em situações em que tenha benefício particular na deliberação ou interesse conflitante com o da companhia), não há um entendimento pacífico a respeito do tema, e o posicionamento da CVM variou historicamente entre a teoria formal e a teoria material. Mais recentemente, pode-se dizer que vigorava o entendimento pelo viés do conflito formal de interesses para as hipóteses nas quais o acionista tivesse um benefício particular ou conflituoso na deliberação em questão. No entanto, a CVM agora parece determinada em sinalizar ao mercado a prevalência da tese de conflito material para essas hipóteses (afora as determinações específicas sobre voto no laudo de avaliação de bens que o acionista queira contribuir para aumento de capital e aprovação das próprias contas, que especificamente são colocados como hipóteses de proibição de voto pela lei).
No Processo Administrativo Sancionador da CVM nº 19957.003175/2020-50, o colegiado recentemente analisou a alegação de conflito de interesse na aprovação por acionista controlador e membro do Conselho de Administração, no âmbito de Assembleia Geral de Acionistas, (i) de aumento de capital social por meio da capitalização de adiantamento realizado pelo acionista controlador e (ii) da criação de capital autorizado para o Conselho de Administração. Esta situação configura o benefício particular do controlador na deliberação, pois o adiantamento realizado pelo controlador se converteria em participação, e diluiria os demais acionistas. Na oportunidade, o diretor relator Alexandre Costa Rangel, o diretor Otto Eduardo Fonseca de Albuquerque Lobo e o diretor e João Pedro Barroso do Nascimento votaram no sentido do não-reconhecimento da existência de conflito de interesse no caso.
Ambos os diretores analisaram a importância do exercício do direito de voto enquanto direito essencial e intangível do acionista, exercido na posição de investidor interessado na direção da atividade social com o fim de usufruir rendimentos. Desta maneira, a questão central, em sua visão, seria se o voto foi realizado de acordo com interesse próprio e em prejuízo à realização do objetivo social da companhia e aos demais acionistas. Em análise sistemática da Lei Federal nº. 6.404/1976 (“Lei das Sociedades por Ações”) em conjunto com a Lei Federal nº. 13.874/2019 (“Lei da Liberdade Econômica”), que prevê a presunção de boa-fé no exercício da atividade econômica, os diretores entenderam que prevalece a tese do conflito material no ordenamento brasileiro. Nesta perspectiva, o diretor Otto Lobo destacou a evolução nas tutelas dos direitos de minoritários, a exemplo dos mecanismos de arbitragem, o que permitiria a revisão do eventual uso abusivo do direito de voto pelo acionista controlador, privilegiando maior eficiência econômica. Ressalta-se, também, que posicionamentos de outros Diretores da CVM em outros casos indicam que a CVM pode ter agora uma maioria de sua Diretoria Colegiada defendendo a tese do conflito material.
No mesmo sentido, acórdão de 23 de agosto de 2022 da 2ª Câmara de Direito Empresarial do TJSP analisou pedido de anulação de assembleia em que houve a aprovação de contas por acionista que exerceu a atividade de administrador por 4 meses. Os desembargadores entenderam que não foi verificada a ocorrência de dano, o que ressaltaram como imprescindível à verificação do abuso do direito de voto, ventilando precedentes do Superior Tribunal de Justiça – tampouco foi verificado voto em interesse incompatível com o interesse da companhia. Note-se que a aplicação da tese do conflito material neste caso é ainda mais incisiva, pois contraria redação que proíbe expressamente o acionista de votar neste tipo de deliberação (Art. 115, § 1º da Lei das Sociedades por Ações), com base na argumentação da necessidade de prova do dano para a companhia.
Não obstante ambas as decisões acima ainda estejam sujeitas a recursos, tais precedentes demonstram posicionamentos convergentes em defesa da tese de conflito material de importantes órgãos de controle das sociedades anônimas e que podem sinalizar a prevalência de interpretação mais branda sobre o exercício do direito de voto por acionista controlador. A prevalência da tese do conflito material indica a redução de controles do poder econômico, retirando presunção de exercício abusivo deste poder, o que, segundo o colegiado da CVM, estimula a realização de investimentos e reforça a importância do direito de voto no direito societário.
Ainda assim, um importante contraponto aos precedentes acima, sobretudo ao argumento do diretor Otto Lobo de que os mecanismos de tutela aos direitos dos minoritários mitigariam os riscos da tese de conflito material, reside no fato de que é provável um aumento de litígios societários decorrentes de controvérsias sobre o direito de voto do acionista controlador. Nessa toada, é fundamental considerar os altos custos da realização de procedimentos arbitrais, que seriam imputados aos minoritários ou às companhias (em caso de ações derivadas), e os impactos operacionais e decisórios da constatação de conflitos societários, que podem dificultar a repreensão de atos abusivos de controladores por acionistas minoritários.
Eduardo Boulos
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