O Plenário da Câmara Federal aprovou em 11/12/2019 o PL 4.162/2019, de autoria do Poder Executivo, para tratar das atualizações da Lei Saneamento Básico – a Lei Federal nº 11.445/2007.
A pauta previa a votação do PL 3.261/2019, cuja tramitação já estava avançada em segundo turno de votação. A alteração na tramitação legislativa atrasará a publicação do novo marco legal, atrasando também os investimentos que o setor tanto necessita. A votação continuará na Câmara Federal no dia 17/12/2019. Na sequência, o texto seguirá para o Senado e poderá voltar à apreciação da Câmara caso haja alterações. Apenas após esse trâmite é que o texto final será encaminhado para a sanção ou veto presidencial, com a consequente promulgação da lei.
O PL 4.162/2019 tem por objeto atualizar e aprimorar a Lei de Saneamento Básico. Ao referido PL encontram-se apensados outros projetos de lei visando a alterar leis conexas à Lei de Saneamento Básico, a exemplo da Lei de Consórcios Públicos (Lei Federal nº 11.107/2005), Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015), Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei Federal nº 12.305/2010) e até mesmo a Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9.605/1998).
Trata-se de tema complexo e de extrema importância. Em pleno século 21, cerca de 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada; quase 100 milhões sem acesso à coleta de esgoto; e um índice de apenas 45% de tratamento do volume de esgoto coletado[1]. Segundo o Panorama de Saneamento 2019 publicado pela ABCON[2], o Brasil ocupa a 106ª posição em um ranking de saneamento mundial, possuindo índices de abastecimento e esgotamento sanitário menores que países como México, Iraque, Bolívia e diversos outros países com renda média inferior à brasileira.
A reversão desse quadro vem acontecendo gradativamente, muito impulsionada pelo crescimento da participação das empresas privadas na prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Contudo, ainda há muito espaço para crescimento. Hoje, as empresas privadas estão presentes em apenas 6% dos 5570 municípios brasileiros. Apesar da baixa representatividade, o investimento dessas empresas compõe cerca de 20% de todo investimento realizado no setor.
O caminho a ser percorrido pela iniciativa privada para aumentar sua relevância no setor apresenta alguns desafios, que poderão ser superados com a promulgação das normas hoje discutidas no Congresso Nacional, como: (i) deficiências no marco regulatório; (ii) constante judicialização da titularidade dos serviços em regiões metropolitanas e microrregiões, onde há intensa conurbação de municípios; (iii) deficiências institucionais das entidades reguladoras dos serviços, sobretudo nos municípios de menor porte; e (iv) maior isonomia competitiva entre operadores públicos e privados dos serviços de saneamento básico.
O Ministro da Economia Paulo Guedes já se manifestou no sentido de que as companhias estatais não têm recursos para realizar os investimentos que o setor necessita, sendo fundamental a maior participação da iniciativa privada.
Entre as principais inovações legislativas trazidas pelo PL 4.162/2019, destacam-se:
- Atribuição à ANA – Agência Nacional de Águas a competência para editar normas de referência nacionais sobre os serviços de saneamento básico, que conferirá maior segurança jurídica na outorga e fiscalização dos serviços pelos municípios e/ou estados.
Embora atribuir tal competência à ANA não seja correto do ponto de vista técnico, trata-se de uma solução que poderá melhorar o ambiente regulatório para as futuras concessões municipais de saneamento. Saneamento básico é tema de interesse local, cuja competência legislativa foi atribuída pela Constituição Federal de 1988 aos municípios.
Contudo, a realidade dos municípios mostrar que a maioria não dispõe de pessoal qualificado e recursos para destinar a atividades regulatórias, a exemplo do estabelecimento das normas de referência e fiscalização da boa prestação dos serviços públicos. Por outro lado, a edição das normas de referência trará padronização normativa para o setor, garantindo ambiente de maior segurança jurídica para os investimentos privados.
O PL ainda prevê que a ANA poderá disponibilizar, em caráter voluntário e sujeito à anuência das partes, ação medidora e arbitral nos conflitos que envolverem titulares dos serviços, agências reguladoras e prestadores dos serviços públicos de saneamento básico.
- Melhor definição sobre a titularidade dos serviços em regiões metropolitanas e microrregiões. A titularidade dos serviços públicos de saneamento nessas regiões gerou muitos litígios entre Municípios e as companhias estaduais de saneamento. Apesar da relevância do tema, trata-se de matéria constitucional, que não deveria ser tratada em lei ordinária.
- Significativa alteração da definição dos serviços incluídos no setor de saneamento. No que se refere ao esgotamento sanitário, o PL 4.162/2019 detalhou melhor as atividades compreendidas nesse serviço. No entanto, parece-nos equivocada a definição proposta para os serviços de abastecimento de água.
O PL 4.162/2019 incluiu como serviço de saneamento básico a reservação, captação e adução de água bruta. No entanto, essa definição contraria a Política Nacional de Recursos Hídricos aprovada pela Lei Federal nº 9.433/1997. Segundo a referida lei, a água é um bem de domínio público, cuja derivação ou captação está sujeita a outorga específica emitida pelo poder público e sujeita a pagamento. Transformar essas atividades em serviço público sem a adequada revisão da Política Nacional de Recursos Hídricos poderá trazer uma série de questionamentos à Lei de Saneamento.
- Obrigatoriedade de prévia licitação à celebração de contratos de concessão que visem à prestação de serviços públicos por entidade que não integre a administração do titular, por força do artigo 175 da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, foi expressamente vedada a outorga dos serviços por contrato de programa, convênio, termo de parceria e outros instrumentos de natureza precária.
Ao contrário do PL 3.216/2019, o PL 4.162/2019 prevê vigência imediata para a vedação à celebração dos contratos de programa, preservando a vigência dos contratos de programa já celebrados à época da promulgação da nova lei.
- Inclusão de cláusulas obrigatórias nos contratos de concessão de serviços de saneamento básico, além daquelas já previstas na Lei de Saneamento Básico e na Lei Geral de Concessões, a Lei Federal nº 8.987/1995, a exemplo (i) do compartilhamento de receita entre concessionária privada e poder público, quando aplicável; (ii) da metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não depreciados na extinção do contrato; e a (iii) da repartição de riscos entre as partes, inclusive no que se refere a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea extraordinária, para uma divisão mais clara das responsabilidades contratuais, especialmente para fins de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
- Expressa autorização legal para previsão de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, incluindo arbitragem, que deverá ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, seguindo a legislação vigente que trata de arbitragem.
- Vedação à distribuição de lucros e dividendos pelo prestador de serviços públicos que estiver descumprindo as metas e cronogramas previstos no contrato de concessão.
- Metas de universalização. Os novos contratos de concessão para prestação de serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e 90% da população com coleta e tratamento de esgoto até 31/12/2023.
Os contratos em vigor que não contemplarem as metas previstas no PL 4.162/2019, deverão viabilizar a inclusão das metas até 31/03/2022, preservando-se o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Em linhas gerais, o PL 4.162/2019 trata das mesmas alterações do PL 3.216/2019. Contudo, as inclusões trazidas pelas emendas parlamentares apresentadas no Plenário da Câmara Federal ao PL 4.162/2019, na sessão realizada em 11/12/2019, poderão alongar as discussões no Senado Federal e no segundo turno da votação na Câmara Federal.
Como exemplo, citamos a vedação de distribuição de lucros para as concessionárias que descumprirem prazos e metas das concessões, sem o cotejo da vedação com a Lei das S.A.; e a inclusão da reservação, captação e adução de água bruta entre os serviços de saneamento básico, sem a devida compatibilização com os conceitos e institutos da Política Nacional de Recursos Hídricos.
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Carolina Caiado e Paulo Renato Barroso, em 12 de dezembro de 2019.
[1] Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2019
[2] http://abconsindcon.com.br/panoramas/ Acesso em 30.08.2019