Foi julgada, pela 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, apelação na qual se reconheceu que a ausência de justa causa para policiais ingressarem em um domicílio torna ilícita a prova do delito de posse ilegal de arma, mesmo se tratando de um crime permanente.
Em primeira instância, o réu foi condenado a quatro anos e dois meses de reclusão, pois o juiz reconheceu a legalidade no ingresso do imóvel pela polícia, entendendo-se que a posse de arma é crime permanente, o que seria suficiente para configuração do flagrante e dispensaria ordem judicial ou autorização do investigado.
Todavia, em segunda instância, entendeu-se que, apesar de se tratar de um crime permanente, não foi encontrado qualquer indício de situação de flagrante delito que autorizasse a invasão do domicílio, visto que o réu não ostentava a arma de fogo, bem como nada de ilícito foi encontrado consigo.
O relator do caso, desembargador Osni Pereira, ponderou que, apesar da denúncia anônima contra o apelante, seria necessário que a presunção de flagrante viesse lastreada por circunstâncias fáticas a lhe conferir justa causa. Seu entendimento foi acompanhado pelos outros julgadores.
Desse modo, foi aplicado pelo órgão colegiado a teoria dos frutos da árvore envenenada, a qual estabelece que toda prova produzida em consequência de uma descoberta obtida por meios ilícitos estará contaminada pela ilicitude desta. Logo, como o ingresso careceu de justa causa, todas as provas obtidas em consequência mostraram-se ilícitas.
O caso representa problema comum em crimes de menor complexidade, onde, não raro, autoridades ingressam sem ordem judicial no domicílio de suspeitos para efetuar flagrantes; em vasta parte, crimes envolvendo a Lei de Drogas.
A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal trancou uma ação penal ajuizada em desfavor de um homem denunciado por crime tributário, tão somente por ocupar a posição de sócio de uma empresa que teria prestado informações falsas à Receita Federal.
Com isso, os Ministros reafirmaram a jurisprudência no sentido de que a denúncia deve descrever de forma objetiva e direta os fatos imputados aos denunciados, inclusive nos crimes societários, uma vez que o Direito Penal não admite a responsabilidade objetiva.
Não se ignora que a Corte Suprema tem flexibilizado os requisitos do artigo 41, do Código de Processo Penal, nos crimes de autoria coletiva (notadamente crimes societários) e firmado orientação jurisprudencial pela possibilidade de denúncia geral nesses casos; o que não se confunde com a denúncia genérica, esta sim inepta. Para o STF, a denúncia genérica aponta fato incerto e imprecisamente descrito, com mera reprodução do tipo penal; já na denúncia geral, há acusação da prática de fato específico atribuído a diversas pessoas, ligadas por circunstâncias comuns, mas sem a indicação minudente da responsabilidade interna e individual dos imputados – a qual será pormenorizada na instrução processual.
Apesar de não se exigir a descrição pormenorizada dos fatos, nesse momento processual de cognição sumária, exige-se a descrição mínima da ação ou omissão imputada e do nexo de causalidade entre a conduta do autor e o resultado delituoso, para fins de delimitação de autoria. Não se presume a culpa em razão da posição hierárquica ocupada pelo sujeito no estatuto ou contrato social da empresa, sob pena de responsabilidade objetiva.
O simples fato de uma pessoa ser sócia administradora da empresa não significa, por si só, que ela teve o dolo de praticar a conduta criminosa ou que teria o dever de evitar a prática do crime e se omitiu; na hipótese de qualquer crime culposo. Por esse motivo, a denúncia deve descrever de forma direta e objetiva os fatos e o envolvimento do sujeito, indo além do mero cargo ocupado na estrutura societária, para viabilizar o exercício dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, na medida em que o acusado se defende dos fatos que lhe são imputados pela acusação.
Recentemente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem tratado de questões relevantes à situação racial e socioeconômica daqueles que se tornam réus no Brasil, como a determinação de que seja gravada a autorização do morador para que policiais adentrem sua casa (algo próximo do tema acima), quando não houver autorização judicial, e o veto da utilização do reconhecimento fotográfico do suspeito como prova suficiente para embasar condenação criminal.
Agora, no julgamento do HC 660.930, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça sinalizou a proximidade de discussão sobre a presunção racial em abordagens policiais.
No caso concreto, em patrulhamento na Vila Industrial da cidade de Bauru (SP), dois policiais militares entenderam haver situação de possível flagrante pois um homem negro estava parado junto ao meio fio em frente a um veículo, como se estivesse vendendo ou comprando algo. Quando a viatura se aproximou, o carro arrancou e o suspeito foi pego com 1,53 g de cocaína, fato que levou a condenação a sete anos e 11 meses de prisão, em regime inicial fechado.
No julgamento, o ministro Sebastião Reis Júnior levantou a possibilidade de haver viés racial em tal abordagem, observando que o único elemento descrito pelos policiais militares para justificar a busca pessoal seria a cor da pele do suspeito, que tão somente se encontrava parado ao lado de um carro. "Para mim, ficou claro que o motivo da aproximação foi por se tratar de pessoa negra. Não tenho a menor dúvida disso", disse o ministro. Por essa razão, o reconhecimento, de ofício, da nulidade da abordagem, diante da manifesta ausência de fundada suspeita que pudesse justificá-la, com consequente absolvição do réu.
A representante do Ministério Público, a subprocuradora da República Luiza Frischeisen, em contraponto, afirmou que, ainda que fosse possível a presença do componente racial no caso, foram produzidas outras provas e, naquele momento, se falava sobre a dosimetria da pena.
Os demais ministros também divergiram, reconhecendo ser o componente racial um problema intrínseco nas questões policiais no país, mas argumentando que, no caso em questão, há dúvida se houve um ato de racismo ou se, simplesmente, os policiais usaram uma expressão, ainda que absolutamente desnecessária, para se referir ao suspeito.
Para a ministra Laurita Vaz, o tema, que classifica ser de alta relevância, pode ser discutido de modo mais aprofundado em caso melhor, que tenha as nuances mais definidas. Para o ministro Sebastião Reis Júnior, o tema é urgente a ponto de poder ter sua discussão levantada, de ofício, no julgamento de tal HC. Durante os debates e em aditamento ao seu voto, ele destacou que não vê necessidade de aguardar um processo "melhor" para que sejam examinadas tais circunstâncias.
Entretanto, vencida sua proposta, o julgamento continuou apenas com a resolução do redimensionamento da pena, estabelecida em dois anos e 11 meses de reclusão, a ser cumprida em regime aberto, com substituição da pena privativa de liberdade por duas medidas restritivas de direitos a serem fixadas pelo Juízo das Execuções Criminais, como requerido pela defesa do réu.
Ao esbarrar em um debate bastante necessário, avizinha-se também abordar um tema já debatido e experienciado nos Estados Unidos da América. Em julgados famosos da Suprema Corte daquele país, tratou-se da noção de racial profilling e sua legalidade como medida adequada de policiamento, como se questões étnicas pudessem servir de parâmetro legal para a abordagem de suspeitos. Em uma lógica sistêmica, a marginalização de variados grupos étnicos permitiria concluir uma possibilidade maior de que estejam eles envolvidos em condutas criminosas; dando uma roupagem técnica a uma suspeita essencialmente racista.
Com profundos efeitos danosos no sistema de justiça daquele país - muitos deles noticiados constantemente pelo mundo -, não podemos ignorar que situação símile ocorre por aqui. Ainda que alguns digam ser algo velado, reputa-se que, pela nossa experiência histórica, questões raciais são determinantes na atuação do sistema criminal e merecem debate sério sobre, à luz da Constituição.